quinta-feira, 23 de setembro de 2010

A Língua



"DEZ CISÕES"

"Para um ensino de língua não ( ou menos) preconceituoso"


"1. Conscientizar-se de que todo falante nativo de uma língua é um usuário competente dessa língua, por isso ele SABE essa língua. Entre os 3 e 4 anos de idade, uma criança já domina integralmente a gramática de sua língua. Sendo assim,

2. aceitar a ideia de que não existe erro de português. Existem diferenças de uso ou alternativa de uso em relação à regra única proposta pela gramática normativa.

3. Não confundir erro de português ( que, afinal, não existe) com simples erro de ortografia. A ortografia é artificial, ao contrário da língua, que é natural. A ortografia é uma decisão política, é imposta por decreto, por isso ela pode mudar, e muda, de uma época para outra.. Em 1899 as pessoas estudavam psychologia e história do Egypto; em 1999 ela estudavam psicologia e história do Egito. Línguas que não têm escrita nem por isso deixam de ter sua gramática.

4. Reconhecer que tudo o que a Gramática Tradicional chama de erro é na verdade um fenômeno que tem uma explicação científica perfeitamente demonstrável. Se milhões de pessoas (cultas inclusive) estão optando por um uso que difere das regras prescritas nas gramáticas normativas é porque há alguma nova regra sobrepondo-se à antiga. Assim , o problema está com a regra tradicional, e não com as pessoas, que são falantes nativos e perfeitamente competentes de sua língua. Nada é por acaso.

5. Conscientizar-se que toda língua muda e varia. O que hoje é visto como "certo" já foi "erro" no passado. O que hoje é considerado "erro" pode vir a ser perfeitamente considerado como "certo" no futuro da língua. Um exemplo: no português medieval existia um verbo leixar ( que aparece até na carta de Pero Vaz de Caminha ao rei D. Manuel I). Com o tempo, esse verbo foi sendo pronunciado deixar porque [d] e [l] são consoantes aparentadas, o que permitiu a troca de uma pela outra. Hoje quem pronunciar leixar vai estar cometendo um "erro"( vai ser acusado de desleixo), muito embora essa forma seja mais próxima da origem latina, laxare ( compare-se, por exemplo, o francês laisser e o italiano lasciare). Por isso é bom evitar classificar algum fenômeno gramatical de "erro": ele pode ser, na verdade, um indício do que será a língua no futuro.

6. Dar-se conta de que a língua portuguesa não vai nem bem , nem mal. Ela simplesmente VAI, isto é, segue seu rumo, prossegue em sua evolução, em sua transformação, que não pode ser detida ( a não ser com a eliminação física de todos os seus falantes).

7. Respeitar a variedade linguística de toda e qualquer pessoa, pois isso equivale a respeitar a integridade física e espiritual dessa pessoa como ser humano, porque,

8. a língua permeia tudo, ela nos constitui enquanto seres humanos. Nós somos a língua que falamos. A língua que falamos molda nosso modo de ver o mundo e nosso modo de ver o mundo molda a língua que falamos. Para os falantes de português, por exemplo, a diferença entre ser e estar é fundamental: eu estou infeliz é radicalmente diferente , para nós, de eu sou infeliz. Ora línguas como o inglês, o francês e o alemão têm um único verbo para exprimir as duas coisas. Outras, como o russo não tem verbo nenhum, dizendo algo assim como: Eu-infeliz ( o russo, na escrita, usa mesmo um travessão onde nós inserimos um verbo de ligação). Assim,

9. uma vez em que a língua está em tudo e tudo está na língua, o professor de português é professor de TUDO. (Alguém já me disse que talvez por isso o professor de português devesse receber um salário igual à soma dos salários de todos os outros professores!).

10. Ensinar bem é ensinar para o bem. Ensinar para o bem significa respeitar o conhecimento intuitivo do aluno, valorizar o que ele já sabe do mundo, da vida, reconhecer na língua que ele fala a sua própria identidade como ser humano. Ensinar para o bem é acrescentar e não suprimir, é elevar e não rebaixar a autoestima do indivíduo. Somente assim, no início de cada ano letivo este indivíduo poderá comemorar a volta às aulas, em vez de lamentar a volta às jaulas ! "

Marcos Bagno
Preconceito Linguístico
o que é, como se faz




Nenhum comentário:

Postar um comentário